terça-feira, 25 de outubro de 2011

#Vazio - Outra Manhã (9)


Concentrados na imagem podiam perceber o movimento da sombra, garantia do movimento do próprio Sol no céu, por mais que a lentidão lhe fizesse parecer estático. Desaparecida a sombra, Valdomiro olhou para o Leste, e Marcus seguiu o exemplo. No espelho d’água, impecavelmente polido em decorrência da absoluta estática do ar foi possível notar alguma agitação, lá no extremo leste. Apenas uma suave e distante oscilação, perceptível por alterações nas tonalidades do azul, antes tão perfeitamente refletido do céu que era quase impossível perceber onde acabava a água. A imperfeição no espelho parecia se mover, como uma mancha que seguia para os lados e para o Oeste. Marcus então percebeu que a agitação na água se aproximava rapidamente. Era o Vento. Não parecia muito forte, pois abalava a água sem levantar ondas. Quando não existia mais espelho, apenas viva água em suas pequenas e quase infinitas ondulações, Marcus sentiu a brisa tocar seu rosto. A brisa começou a aumentar de intensidade, ainda que não se ampliasse a agitação na água. Nenhuma onda aconteceu quando o vento atingiu tamanha força que quase o desequilibrou. Valdomiro o cutucou e disse:
- Ali Rapaz! Olhe! E apontou para o Oeste. Ali é a garganta, e a vida está querendo nos vomitar. Mas eu não, eu estarei agarrado a este mundo mesmo quando não houver mais vida neste corpo. Marcus se lembrou do corpo na estrada.
Valdomiro, seguido por Marcus, correu para a borda oeste da estrada, lançando-se sobre a segunda trilha, da qual tinha vindo Marcus, abaixando-se ali para que a muralha o abrigasse do vento. Agachado ao seu lado Marcus escutou a estrondosa força do Vento, embora não sentisse qualquer respingo d’água, tampouco observasse qualquer poeira ser carregada.
- Isto não faz o menor sentido. Protestou Marcus
- E o que fazia sentido antes? Retrucou Valdomiro, tirando-lhe a segurança da vida anterior ao vendaval.
- Estamos mortos, ou em coma. Ou eu estou louco!
- O talho em seu braço não me parece coisa de morto, Rapaz. E se a loucura é sua, o que eu “to” fazendo aqui?
- Você deve ser uma ilusão da minha cabeça, como todo o resto.
Enfurecido, Valdomiro arrancou do único bolso de sua calça um pequeno pedaço de plástico vermelho. Abriu e quase o esfregou no rosto de Marcus. Dentro estavam duas fotos 3x4. O rosto de uma mulher de idade equivalente à de Valdomiro e outra, de uma menina aparentando pouco mais de dez anos.
- Olhe aqui moleque. Eu amei esta mulher com toda a minha força e mais ainda esta menina. Não ouse dizer que são ilusões da SUA cabeça! Nada neste inferno é mais real que a saudade que eu sinto delas. Não existia qualquer graça naquelas palavras.
Marcus abaixou a cabeça, envergonhado e sem saber o que responder. O vento seguiu, tão enfurecido quanto Valdomiro, por mais uns cinco minutos e se extinguiu como se nem tivesse acontecido. Marcus desejou que continuasse, pois o silêncio do mundo só não era mais desconcertante que o próprio silêncio de Valdomiro, o qual olhava inexpressivo para o Oeste, mas na verdade olhava para suas próprias memórias. Depois de um longo suspiro, levantou com sua lança na mão e voltou para a estrada do alto da muralha sem olhar para Marcus, como se ele nem estivesse ali. Desejava que não estivesse. Saber que outra pessoa ficou naquele mundo perdido e que esta pessoa não era sua filha o destruía por dentro.
Marcus deixou-se cair para trás, sentando no chão de cascalho. Não ousava seguir Valdomiro nem dirigir-lhe a palavra. Sentiu fome.

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