sexta-feira, 14 de outubro de 2011

#Vazio - Outra Manhã (4)


Ele levantou e encarou o homem da cama.
- Façamos o seguinte. Por que você não escolhe um nome temporário para você e outro para mim? Assim poderemos dar maior naturalidade para nossa conversa, sem comprometer o meu propósito de não lhe ENSINAR quem você é.
O homem da cama pareceu aceitar bem os esclarecimentos do médico, embora o frustrasse a idéia de estar a tanto tempo no hospital. Pensou um pouco e disse:
- Posso me chamar Marcus, com “U”. Sempre achei um nome interessante. Disse ele ao mesmo tempo em que se perguntava como sabia que sempre gostou de um nome se não se lembrava nem do próprio nome. Você tem cara de “Dr. Willian”.
- Muito bom! Exclamou o homem de barba entre gargalhadas. Então vamos recomeçar. Boa Noite, Senhor Marcus! Eu sou o Dr. Willian, responsável pela psiquiatria neste hospital.
Um pouco mais relaxado, o homem da cama seguiu:
- Doutor, o que faço aqui? Tenho uma recordação estranha. Temo estar enlouquecendo. Tudo em mim diz que não foi um sonho.
- “Recordação estranha”, você diz. Por estranha que seja, por que deveria ser um sonho?
Marcus narrou detalhadamente toda a sequência de eventos, desde o desaparecimento das pessoas, o vendaval que arrastou o mundo e o corpo pendurado à beira da estrada. O médico sentou novamente e dialogou serenamente:
- Qual o limite entre a vigília e o sono? Percebendo a interrogação no olhar de Marcus, a médico acrescentou. “Vigília” é quando você está acordado. Acordado você vive uma multidão de experiências, todas nítidas e seguramente reais. Mas no sono, você vive tantas outras experiências, muitas vezes nítidas e igualmente reais. Qual o critério, então, para definir quais destas duas experiências é real? Qual é ilusão?
O homem da cama não era um tolo, assim, sentiu-se capaz de dialogar com o médico no mesmo nível:
- Ora, é simples. Cada vez que acordo eu retomo a vida exatamente de onde havia parado. A sequência lógica e até mesmo cronológica é que me dá esta segurança de que estou acordado e vivo. Eu já tive sonhos muito reais, mas não os retomo na noite seguinte. Cada um é único, isolado, o que me permite separá-los e classificá-los, como faria com um livro ou filme.
Apresentando mais satisfação que surpresa, o médico seguiu:
- Excelente conclusão, meu amigo. Mas permita-me amplificar a sua percepção da coisa. O que é um livro se não um sonho daquele que o escreve? Ora, mesmo sendo um sonho que se interrompe diversas vezes durante sua produção, com refeições, tarefas, noites de sono e um oceano de outros eventos nos dias, meses e até mesmo anos que se leva para produzir um livro, a “sequência lógica”, como você coloca, se mantêm. Agora observe: o espírito, ou mente, que criou o sonho que você chama de “livro” é o mesmo espírito que criou a história isolada que você chama de “sonho”. Se o livro é a evidência de que este espírito é capaz de criar uma longa história, segmentada em diversos dias, sem perder a tal “sequência lógica”, tanto é capaz de fazer algo igual em um sonho. Então me diga, se numa bela noite o seu espírito decide manter a “sequência” de sonhos anteriores, conferindo-lhes sustentação e propósito, como poderemos, na manhã seguinte, definir o limite entre a vigília e o sono? Qual será o critério para definir quais destas duas experiências é real? Qual é ilusão?

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