Ele levantou e encarou o homem da cama.
- Façamos o seguinte. Por que você não escolhe um nome temporário para
você e outro para mim? Assim poderemos dar maior naturalidade para nossa
conversa, sem comprometer o meu propósito de não lhe ENSINAR quem você é.
O homem da cama pareceu aceitar bem os esclarecimentos do médico, embora
o frustrasse a idéia de estar a tanto tempo no hospital. Pensou um pouco e
disse:
- Posso me chamar Marcus, com “U”. Sempre achei um nome interessante.
Disse ele ao mesmo tempo em que se perguntava como sabia que sempre gostou de
um nome se não se lembrava nem do próprio nome. Você tem cara de “Dr. Willian”.
- Muito bom! Exclamou o homem de barba entre gargalhadas. Então vamos
recomeçar. Boa Noite, Senhor Marcus! Eu sou o Dr. Willian, responsável pela
psiquiatria neste hospital.
Um pouco mais relaxado, o homem da cama seguiu:
- Doutor, o que faço aqui? Tenho uma recordação estranha. Temo estar
enlouquecendo. Tudo em mim diz que não foi um sonho.
- “Recordação estranha”, você diz. Por estranha que seja, por que deveria
ser um sonho?
Marcus narrou detalhadamente toda a sequência de eventos, desde o
desaparecimento das pessoas, o vendaval que arrastou o mundo e o corpo
pendurado à beira da estrada. O médico sentou novamente e dialogou serenamente:
- Qual o limite entre a vigília e o sono? Percebendo a interrogação no
olhar de Marcus, a médico acrescentou. “Vigília” é quando você está acordado.
Acordado você vive uma multidão de experiências, todas nítidas e seguramente
reais. Mas no sono, você vive tantas outras experiências, muitas vezes nítidas
e igualmente reais. Qual o critério, então, para definir quais destas duas
experiências é real? Qual é ilusão?
O homem da cama não era um tolo, assim, sentiu-se capaz de dialogar com o
médico no mesmo nível:
- Ora, é simples. Cada vez que acordo eu retomo a vida exatamente de onde
havia parado. A sequência lógica e até mesmo cronológica é que me dá esta
segurança de que estou acordado e vivo. Eu já tive sonhos muito reais, mas não
os retomo na noite seguinte. Cada um é único, isolado, o que me permite
separá-los e classificá-los, como faria com um livro ou filme.
Apresentando mais satisfação que surpresa, o médico seguiu:
- Excelente conclusão, meu amigo. Mas permita-me amplificar a sua
percepção da coisa. O que é um livro se não um sonho daquele que o escreve?
Ora, mesmo sendo um sonho que se interrompe diversas vezes durante sua
produção, com refeições, tarefas, noites de sono e um oceano de outros eventos
nos dias, meses e até mesmo anos que se leva para produzir um livro, a
“sequência lógica”, como você coloca, se mantêm. Agora observe: o espírito, ou
mente, que criou o sonho que você chama de “livro” é o mesmo espírito que criou
a história isolada que você chama de “sonho”. Se o livro é a evidência de que
este espírito é capaz de criar uma longa história, segmentada em diversos dias,
sem perder a tal “sequência lógica”, tanto é capaz de fazer algo igual em um
sonho. Então me diga, se numa bela noite o seu espírito decide manter a
“sequência” de sonhos anteriores, conferindo-lhes sustentação e propósito, como
poderemos, na manhã seguinte, definir o limite entre a vigília e o sono? Qual
será o critério para definir quais destas duas experiências é real? Qual é
ilusão?
Continua em #Vazio - Outra Manhã (5)
Nenhum comentário:
Postar um comentário